domingo, 11 de junho de 2017

No front das emoções


"Minha mãe correu até o trem...Ela era rígida. Nunca nos beijava, não elogiava. Se a gente fizesse algo bom, ela só nos lançava um olhar carinhoso e pronto. Mas naquela hora ela veio correndo, segurou minha cabeça e me beijou, beijou. E então me olhou nos olhos...Ficou olhando...Por muito tempo...Entendi que nunca mais veria a minha mãe. Senti isso...Deu vontade de largar tudo, entregar minha sacola e voltar para casa. Fiquei com pena de todos...Da minha avó...Dos meus irmãozinhos...E então começou a tocar a música...Veio a ordem: 'Dis-per-sar! Em-barcar! Aaaaos vagões!'. Passei muito tempo acenando com as mãos..." (Tamara Uliánova Ladínina, soldado de infantaria) (p. 73)

Precisei de quase duas semanas para finalizar a leitura do magnífico "A guerra não tem rosto de mulher" escrito pela, vencedora do Nobel de Literatura de 2015, Svetlana Aleksiévitch, e traduzido/editado em Língua Portuguesa pela editora Cia das Letras.

E se não fosse suficiente o extenso período de leitura, necessitei, ainda, de dois dias de reflexão para só então conseguir escrever algo sobre esse livro...
A cada virada de página brotava em meu coração uma emoção diferente: por meio desse livro, pude experimentar do mais profundo ódio, até o mais sublime amor! 
Muito embora ler sobre uma guerra não seja, em absoluto, comparável a experiência de viver um conflito armado, ouso dizer que os relatos do livro são tão cativantes que têm o poder de levar o leitor ao front, à enfermaria, ao campo de trabalho forçado...como chorei (e chorei!) lendo "A guerra não tem rosto de mulher"...


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Para contextualizar um pouco, o "A guerra não tem rosto de mulher" traz a luz histórias, até então ignoradas, sobre as soldadas e guerrilheiras soviéticas que lutaram durante a terrível 2ª Guerra Mundial, descrevendo o papel - sem dúvida, fundamental! - delas na vitória sobre o horror propagado por Hitler e seus aliados.

"Mas, na Segunda Guerra Mundial, o mundo foi testemunha do fenômeno feminino. Em muitos países, as mulheres serviram em todas as forças armadas: nas tropas inglesas eram 225 mil, nas americanas, 450, 500 mil; nas alemães, 500 mil...No exército soviético lutaram aproximadamente 1 milhão de mulheres. Elas dominavam todas as especialidades militares, inclusive as mais "masculinas". Surgiu até um problema linguístico: as palavras 'tanquista', 'soldado de infantaria', 'atirador de fuzil', até aquela época, não tinham gênero feminino, porque mulheres nunca tinham feito esse trabalho. O feminino dessas palavras nasceu lá, na Guerra..." (p. 8)

Além disso, convém mencionar que a obra foi escrita no final dos anos 1970, antes do recente fenômeno do empoderamento feminino ou mesmo da era do "livre" acesso à informação que vivemos hoje. Portanto, logo de inicio, Svetlana conta um pouco sobre seu diário de escrita e sobre as recusas que o manuscrito teve por parte de editoras durante muitos anos:

"O manuscrito está na gaveta há muito tempo...Já faz dois anos que recebo recusas das editoras. Silêncio das revistas. A sentença é sempre a mesma: é uma guerra terrível demais. Muito horror. Naturalismo. Não há menção à liderança e à orientação do Partido Comunista. Em outras palavras, não é a guerra certa...E qual seria? Com generais e o sábio generalíssimo? Sem sangue e sem piolhos? Com heróis e façanhas?" (p. 25)

A autora, ao comentar a rotina de sua escrita, traz informações sobre as entrevistas que realizou e sobre trechos retirados do manuscrito original, sugerindo o que poderia ser interpretado como o motivo pelo qual, durante tantos anos, a história feminina na Guerra foi escondida, enquanto que aquilo contado e narrado por homens foi tão enaltecido:

"Os homens...A contragosto eles deixam a mulher entrar em sua guerra, em seu território. Fui procurar uma mulher na fábrica de tratores de Minsk; ela tinha sido francoatiradora. E famosa. Apareceu mais de uma vez em manchetes de jornal. As amigas dela me deram o número do telefone de sua casa em Moscou, mas era antigo. Sobrenome também, eu só tinha o de solteira. Fui à fábrica onde, como eu sabia, ela trabalhava, e no departamento pessoal escutei dos homens (do diretor da fábrica e do chefe do departamento): "Por acaso falta homem para isso? Para que você quer essas histórias de mulher? Fantasias de mulher...". Os homens tinham medo de que elas não contassem direito a guerra." (p. 21)

Após isso, surge o convite ao leitor para o mergulho num mar de emoções decompostas em auto-impressões da própria Svetlana sobre as histórias ouvidas, e em transcrições fiéis dos relatos ouvidos.

"Alguém nos entregou...Os alemães descobriram onde ficava o acampamento dos partisans. Cercaram a floresta e fecharam as passagens por todos os lados. Nos escondemos em um matagal fechado, fomos salvos pelos pântanos onde a tropa punitiva entrava. Um lodaçal. Ele encobria muito bem tanto as pessoas quanto os equipamentos. (...) Havia conosco uma operadora de rádio que tivera filho há pouco tempo. A criança estava com fome...Pedia o peito. Mas a própria mãe estava passando fome e não tinha leite, e a criança chorava. Os soldados da tropa punitiva estavam por perto...Tinham cachorros...Se os cachorros escutassem, todos nós morreríamos. Todo o grupo, umas trinta pessoas. Entende? O comandante tomou a decisão...Ninguém se animava a transmitir a ordem para a mãe, mas ela mesma adivinhou. Foi baixando a criança enroladinha para a água e segurou ali por um longo tempo...A criança não gritou mais...Nenhum som...E nós não conseguíamos levantar os olhos. Nem para mãe, nem uns para os outros..." (p. 32)

Pois bem.

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Lyudmila Pavlichenko, francoatiradora

Assim como no "Vozes de Tchernóbil", Svetlana Aleksiévitch constrói o seu livro a partir da transcrição ipis litteris dos relatos das mulheres do povo, das enfermeiras, das partisans e das soldadas que batalharam, junto com o Exército Vermelho e sob o pálio do ideal comunista, contra os partidários de Hitler no período da Segunda Grande Guerra.

Em cada relato é possível sentir as emoções que permeiam o contexto de uma guerra onde o sustento daqueles que foram para o front, muitas vezes foi a fé em um ideal.
Na guerra contada por meio do livro de Svetlana, vê-se o heroico em pequenos gestos, como o de enfermeiras raquíticas que carregavam da trincheira até a enfermaria soldados e equipamentos com o dobro de seu peso.

Há piolhos, doenças e sangue. Há fome. Há sede.

Contudo, o medo é suprimido ao máximo...não havia espaço para que o povo, o exército vermelho hesitasse: mesmo em posse de uma simples baioneta contra os tanques de artilharia alemã, ainda assim cada relato conta como o exército e o próprio povo avançava e lutava pela terra que amava, pelo ideal em que acreditavam.

"Será que encontro palavras? Sobre como eu atirava eu posso contar. Sobre como eu chorava, não. Isso continuará não dito. Sei de uma coisa: na guerra, o ser humano se torna terrível e inconcebível. Como entendê-lo? Você é escritora. Invente algo você mesma. Algo bonito. Sem piolhos nem sujeira, sem vômito...Sem cheiro de vodca e sangue...Que não seja tão terrível quanto a vida..." (Anastassia Ivánovna Medvédkina, soldado, atiradora de metralhadora) (p. 259)

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Mulheres e crianças andando para o leste da Rússia depois da invasão alemã, 1941. 
Foto: 1941 Max Alpert/Slava Katamidze Collection/Getty Images

Apesar do viés tão trágico e do jeito cru com que são lançados os relatos de guerra, a autora traz um ponto de vista mais humano sobre as batalhas e invasões:

"Isso já foi em Berlim...Me aconteceu o seguinte caso: estava andando pela rua e, ao meu encontro, veio saltando um menino com um fuzil, um Volkssturm, já no fim da guerra. Nos últimos dias. Eu estava com um fuzil nas mãos, preparado. Ele olhou para mil, piscou e começou a chorar. Eu também não acreditava em mim mesma: fiquei com os olhos marejados. Tive tanta pena, o guri ali com aquele fuzil idiota. Eu o empurrei na direção de um edifício destruído, para a entrada, e disse: "Esconda-se". Mas ele se assustou, achou que eu ia dar um tiro: eu estava com um gorro, não dava para ver se era uma moça ou um rapaz. Segurou minha mão. Estava aos prantos! Fiz carinho na cabeça dele. O menino emudeceu. Apesar de tudo, era a guerra...Sim, eu mesma fiquei muda! Eu os odiara por toda a guerra! Fosse justo ou injusto, eu tinha asco de matar, especialmente nos últimos dias da guerra..." (Albina Aleksándrovna Gantimurova, primeiro-sargento, batedora) (p. 367)

O livro, em conjunto, é um exercício para a empatia e um convite à reflexão sobre a (in)utilidade da guerra. Simplesmente: leitura obrigatória!

segunda-feira, 10 de abril de 2017

Um mundo que caiu.

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 "Eu gostava da luz, gostava do ar entre as ripas. Eu queria escrever histórias cheias de correntes de ar, raios filtrados pelos quais dança o pó. E depois eu amava a escrita de quem te faz olhar para baixo de cada linha deixando sentir a vertigem da profundidade, a escuridão do inferno." (pos. 226 a 227)

Em meados de março, li, em formato ebook, o sofrido "Dias de Abandono", da mais nova coqueluche das prateleiras destacadas das livrarias: Elena Ferrante que, para quem não sabe, é um pseudônimo de uma escritora italiana que mantém, sob uma aura do mais absoluto mistério, em segredo a sua identidade. 
Confesso que toda essa atmosfera de sigilo sobre a identidade de Elena Ferrante me levou a questionar se essa seria a razão para tanta comoção sobre os livros desta escritora. Contudo, com a leitura do "Dias de Abandono" e do maravilhoso "A Filha Perdida", constatei que esse recente sucesso no Brasil não é em vão!

Pois bem.


Falando sobre o livro, tem-se que o texto do "Dias de Abandono" é narrado em primeira pessoa e totalmente sob a perspectiva de Olga, uma mulher italiana típica, perdidamente apaixonada pelo marido Mário, uma boa mãe para seus rebentos Ilária e Gianni e, na medida do possível, uma dona razoável para o cão Otto.

Nesse cenário, apenas com a apresentação do círculo familiar da personagem central do livro, é possível imaginar que ela vive uma existência feminina plena, gozando de uma vida que poderia ser chamada de "comercial de margarina". Entretanto, em mais um dia comum de felicidade, o mundo de Olga caiu por meio de um intempestivo anúncio de divórcio:

"Uma tarde de abril, logo após o almoço, meu marido me comunicou que queria me deixar. Fez isso enquanto tirávamos a mesa, as crianças brigavam como sempre no outro cômodo, o cachorro sonhava resmungando ao lado do aquecedor. Disse-me que estava confuso, que vivia maus momentos de cansaço, de insatisfação, talvez de covardia. Falou por muito tempo dos nossos quinze anos casados, dos filhos, e admitiu que não tinha que reclamar nem deles nem de mim. Manteve a compostura de sempre, contendo um gesto de excesso com a mão direita quando me explicou com uma careta infantil que vozes leves, certo sussurro, o levavam para outro lugar. Depois assumiu a culpa de tudo que estava acontecendo e fechou com cuidado a porta atrás de si, deixando-me como uma pedra ao lado da pia." (pos. 57 a 60)

E assim começa, de maneira abrupta, o texto de Elena Ferrante. Nas páginas seguintes, acompanhamos como Olga lida com a dor do abandono, sofrimento este que extrapola as raias da mera tristeza e traz sintomas de dor física à mulher deixada pelo marido.

Elena, neste livro em particular, consegue, induzir o leitor a realmente se colocar no lugar de Olga e com isso sentir toda a intempérie de sentimentos suportada pela personagem.

Nessa catarse criada por meio do texto de Elena, eu que nunca vivenciei, enquanto esposa de alguém, a sensação de abandono trazida pela simples menção à palavra divórcio, consegui imaginar e sentir a dor de vivenciar o fim de uma união, ainda que haja algum consenso no final. "Dias de Abandono", em verdade, permitiu-me experimentar a sensação de frustração e raiva vivenciada por Olga e Mário em vista da relação que não foi a frente.

E se não fosse suficiente o drama do divórcio, o "Dias de Abandono" vai mais além, pois Elena Ferrante cria e narra todo um cenário de enfrentamento do divórcio pelos filhos do ex-casal, delineando uma breve ilustração sobre o tema alienação parental e sobre as pequenas chantagens emocionais feitas por crianças cujos pais se separaram e, quem sabem, já arranjaram novos companheiros.

Esta obra de Elena, além da catarse, permite ao leitor construir/identificar uma relação entre o sofrimento descritivo de Olga - a "pobre coitada" abandonada pelo marido - e as musas e compositoras de "canções de fossa" famosas. Particularmente, a cada virada de página, e cada lágrima/grito/ferida de Olga, vinha a minha mente a famosa "Meu mundo caiu", da cantora Maysa:

"Meu mundo caiu
E me fez ficar assim
Você conseguiu
E agora diz que tem pena de mim
Não sei se me explico bem
Eu nada pedi
Nem a você nem a ninguém
Não fui eu que caí
Sei que você me entendeu
Sei também que não vai se importar
Se meu mundo caiu
Eu que aprenda a levantar
"

A fim de evitar dar grandes spoilers sobre o livro, basta encerrar comentando que "Dias de Abandono" é um livro para ser vivido e sentido até a última página. Simples assim.

sexta-feira, 7 de abril de 2017

Palavras na brisa noturna



"Quando alguém mergulha nas próprias recordações, abre uma porta para o passado; a estrada lá dentro tem muitas ramificações e a cada vez o trajeto é diferente" (pos. 74 a 75)

Por indicação da minha amiga, Tatiane Nantes, na última semana li, em formato ebook,  o incrível "As Boas Mulheres da China", escrito por Xinran, uma jornalista chinesa radicada em Londres.
Contudo, antes de mergulhar no livro em si, pude constatar que a primeira questão lançada aos meus olhos Ocidentais foi: o quanto sei sobre a China?
Bem, particularmente, eu só conhecia a Muralha da China, a Mulan, o Horóscopo Chinês, assim como o fato de que os chineses consomem insetos e o de que a China é enquadrada como um país de ideologia comunista, além de ser o mais populoso do mundo...Ah! Também tem as Olimpíadas de Pequim e o Mahjong. E só!

Na verdade, confesso que nunca me interessei muito pela História chinesa e seus entraves culturais, políticos e sociais.
Também nunca dei a devida atenção aos noticiários que vez, por outra, dão conta de tragédias naturais na China, todavia, após o livro de Xinran, meu olhar sobre esse populoso país mudou completamente.

Dessa forma, apenas para contextualizar o momento histórico do livro, convém pontuar, ainda que sucintamente, os seguintes fatos da história da China, especialmente porque o livro é ambientado durante a ocorrência deles:

- O primeiro fato é que, no período de 1º de outubro de 1949 a 9 de setembro de 1976, a República Popular da China - que foi cunhada após a Revolução Chinesa - o país esteve sob o comando de Mao Tse-Tung, que seguia os ideais comunistas, no que se incluiu, por óbvio, uma brutal repressão àqueles que seguiam parâmetros capitalistas e neoliberais, chamados contrarrevolucionários.


Retrato oficial de Mao Tse-Tung


- O segundo é que, durante a gestão presidencial de Mao Tse-Tung foi promovida a "Grande Revolução Cultural Proletária", cujos alvos eram os membros do partido mais alinhados com o Ocidente ou com a União Soviética, funcionários burocratas e, sobretudo, intelectuais. Como na intelectualidade se encontravam alguns dos potenciais inimigos da Revolução, o ensino superior foi praticamente desativado no país.


- Já o terceiro é que, com a morte de Mao Tse-Tung, houve a ascensão de Den Xiaoping ao poder, adotando-se as Quatro Modernizações e implantando, no campo econômico, o Socialismo de Mercado, ocasião na qual a China passou a receber investimentos privados estrangeiros, desenvolver empresas privadas e a criar Zonas Econômicas Especiais. Entretanto, a Chincontinua sob o governo do Partido Comunista Chinês, que ainda reprime brutalmente as manifestações populares e a livre expressão. Exemplo disso foi o massacre promovido pelo governo na Praça da Paz Celestial, em Pequim, em 1989.

"Nós dizemos: 'em casa, acredite nos seus deuses e faça o que quiser; fora de casa, acredite no Partido e tome cuidado com o que fizer'" (pos. 1501) 

Pois bem.


Superada essa quase didática introdução, é tempo de passar ao livro de Xinran, autora que, segundo o site da Cia das Letras: "ficou conhecida como a jornalista que "ergueu o véu das mulheres chinesas", graças a seu programa de rádio em que ouvintes relatavam casos de violência e de sofrimento". Em "As Boas Mulheres da China", "ela narra experiências de suas entrevistadas ao mesmo tempo que conta a própria história, também marcada pelo preconceito e pela opressão".


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Xinran


"As Boas Mulheres da China" é, portanto, um livro essencialmente feminino e, em toda a sua brutalidade, é também um texto absolutamente sensível. Composto por uma coletânea de relatos das ouvintes do programa de rádio que Xinran apresentava, o "Palavras na brisa noturna" e da própria autora, que teve parte da infância ceifada durante a já mencionada Revolução Cultural, o livro traz o olhar de cada geração de mulheres chinesas - das mais as menos instruídas -, sobre três sensíveis temas que, interligados (e ressalvado o perigo da generalização), são constantes ao chamado "sexo frágil": amor, sexualidade e casamento.

"As boas chinesas são condicionadas a se comportar de maneira meiga e dócil, e levam esse comportamento para a cama. O resultado é que os maridos dizem que elas não têm sex appeal e as mulheres se submetem à opressão, convencidas de que a culpa é delas. Têm que arcar com a dor da menstruação e do parto, e trabalhar como homens para sustentar a família quando o marido não ganha o suficiente. Os homens penduram fotos de mulheres bonitas acima da cama para se excitarem, enquanto as esposas se culpam pelo corpo desgastado que têm. Em todo caso, aos olhos dos homens não existe isso de boa mulher" (pos. 721 a 725)

"Jin Shuai falou, com tom de autoridade: "O homem que uma mulher que seja esposa virtuosa, boa mãe e que possa fazer todo o trabalho doméstico como uma empregada. Fora de casa, ela deve ser atraente e culta, e ser um crédito para ele. Na cama, deve ser uma ninfomaníaca." (pos. 734 a 736)

"Quando bebem, os homens vêm com algumas definições de mulheres. As amantes são como peixes-espada: saborosas, mas com espinhas afiadas. As secretárias particulares são como carpas: é preciso cozinhá-las em fogo lento para terem mais sabor. As esposas dos outros homens são como o baiacu japonês: pode matar, mas correr o risco de morte é fonte de orgulho", "E as esposas deles mesmos?" "São bacalhau salgado"." Bacalhau salgado? Por quê?" "Porque o sal conserva por muito tempo. Quando não há outra comida, o bacalhau salgado é barato e conveniente, e, junto com arroz, dá uma refeição..." (pos. 859 a 864) 

Não se atendo, todavia, aos relatos de amor/sexo/casamento das mulheres entrevistadas, Xinran comenta aspectos culturais muito sutis às mulheres chinesas e faz ora um contraponto entre elas e as ocidentais, ora entre as "chinesas da cidade" e as "chinesas do interior":

"Nos anos 30, quando as ocidentais já exigiam a igualdade sexual, as chinesas apenas começavam a desafiar a sociedade dominada pelo homem, recusando-se a ter os pés enfaixados ou a contrair núpcias arranjadas pela geração mais velha." (pos. 882 a 883)

E justamente nesse contraponto, a autora consegue abordar temas delicados como violência doméstica e virgindade feminina:

"Para muitos chineses, quando um homem espanca a esposa ou os filhos, está "pondo a casa em ordem". As camponesas mais velhas, em particular, aceitam a prática. Como viveram de acordo com o ditado de que "uma esposa ressentida tem que suportar até virar sogra", acreditam que todas as mulheres devem sofrer o mesmo destino"

A virgindade feminina na China é um persistente tabu, especialmente porque a educação sexual constitui um tema praticamente proibido às chinesas, sobre as quais recai o ônus da castidade até o matrimônio sob um manto de absoluta ignorância.

Em mais de uma ocasião, o livro comenta que para muitas jovens chinesas questões simples como beijos e abraços entre casais são temas não abordados e condutas desencorajadas, sob o risco de a mulher (sempre a mulher!) ser considerada "má" e "usada", não apta para o casamento. Além disso, o livro descreve que, em virtude de tal desconhecimento, muitas mulheres chinesas são alvo de abusos cruéis:

"Na véspera de Ano-Novo do ano em que fiz onze anos, levantei bem cedo e, inexplicavelmente, estava sangrando. Fiquei tão assustada que me pus a chorar. A minha mãe, que veio ter comigo quando me ouviu, disse: "Hongxue, você cresceu". Ninguém, nem mesmo ela, tinha me falado sobre coisas de mulheres antes. Na escola, ninguém ousava fazer essas perguntas ultrajantes. Naquele mesmo dia, mamãe me deu uns conselhos básicos sobre como lidar com o meu sangramento, mas não explicou mais nada. (...) Um dia, em fevereiro, estava nevando muito e mamãe tinha saído para visitar uma vizinha. Meu pai tinha vindo da base militar, para uma de suas raras visitas. Ele me disse: "Sua mãe disse que você cresceu. Vamos, tire a roupa para papai ver se é verdade". (...) "Rápido! O papai ajuda!", disse ele, tirando-me a roupa com destreza. Ele, que normalmente tinha os movimentos lentos, estava totalmente diferente. Começou a passar as mãos pelo meu corpo inteiro, perguntando: "Esses mamilosinhos já incharam? É daqui que o sangue vem? Esses lábios querem beijar o papai? É gostoso quando o papai passa a mão aqui, assim?" . Eu me sentia morta de vergonha. Pelo que me lembrava, nunca tinha estado nua na frente de ninguém (...) Essa foi a minha primeira "experiência de mulher". Depois, tive uma náusea muito forte. A partir de então, bastava que minha mãe não estivesse na sala - ainda que estivesse só na cozinha, cozinhando, ou no banheiro - para que o meu pai me prensasse atrás da porta e me alisasse inteira. Fui ficando com um medo cada vez maior desse "amor"." (pos. 227 a 243)

Entrementes, não obstante seja dado conhecimento ao leitor sobre a ignorância de muitas chinesas sobre o sexo e o amor em si, o livro aborda um viés contraditório da cultura sexual chinesa pois se de um lado a castidade é exigida, de outro, admite-se certas formas de prostituição. Nesse particular, Xinran tocou no que seria chamado aqui no Ocidente como "prostituição de luxo":

"Hoje os homens ricos estão mais exigentes em seus requisitos para companhia feminina. Querem desfilar com uma 'secretária particular' ou com uma acompanhante que tenha cultura. (...) Uma secretária particular trabalha só para um homem, uma acompanhante trabalha para muitos. Há três níveis de companhia. O primeiro envolve acompanhar os homens a restaurantes, boates e bares de karaokê. O segundo nível leva a uma coisa um pouco além: eventos como teatro, cinema e assim por diante. Chamamos esse nível de 'vender arte, não a si mesma'. Claro que deixar esses homens passarem a mão em você por cima da roupa faz parte do trato. O terceiro nível envolve estar à disposição dia e noite, também para sexo."  (pos. 752 a 759)

Em síntese, "As Boas Mulheres da China" é um livro que transcende a essência da mulher chinesa, visto que consegue comunicar os anseios de mulheres que amam e sofrem a qualquer leitor, de qualquer gênero e nacionalidade.

Nesse panorama, traçando um paralelo entre os temas contidos no livro e a realidade brasileira, é fácil ver semelhanças entre as vivências das mulheres do Brasil e da China, visto que aqui, apenas em 2006, foi editada uma lei que resguarda as vítimas de violência doméstica. Além disso, senão por meio de uma ideologia política mas sim pela difusão de crenças fundamentalistas, a virgindade ainda é tabu e, não há como se negar a chamada "cultura do estupro".

Simplesmente, leitura recomendada e obrigatória.

Gratidão à amiga Tatiane, pela ótima indicação.

sábado, 25 de março de 2017

Atirei-me no abismo ao largo do campo de centeio [texto em absoluta primeira pessoa]

Hoje, mais precisamente durante uma tediosa aula de pós-graduação, finalizei a leitura do adorável "O Apanhador no Campo de Centeio", do J.D. Salinger. Ocorre que, ao encerrar a leitura, imediatamente me vi em frente a um grande dilema: escrever ou não alguma anotação sobre o livro, pois, no caso dessa obra em específico, fazer alguma citação ou transcrição de um trechinho que o valha poderia resultar em um belíssimo spoiler...Entrementes, mesmo em vista de uma escolha tão dificultosa, não poderia ignorar a genialidade de "O Apanhador no Campo de Centeio", então - e já me desculpando antecipadamente pela brevidade e pela pessoalidade do texto - vou, com empenho, tentar rascunhar algumas linhas sobre esse fantástico livro...

"O Apanhador no Campo de Centeio" é, antes de mais nada, um livro despretensioso que narra um final de semana, na cidade de Nova Iorque, da vida do jovem Houlden Caulfield. E, justamente, por ser tão carente de pretensões que essa obra pioneira na abordagem do tema "juventude" pode ser compreendida tanto como essencial, quanto como atemporal.

Pois bem.

Houden Caulfield, protagonista e narrador da história, é um jovem de classe média e de uma boa família, mas com sérios problemas de como enfrentar todas as mudanças e dilemas típicos das passagens infância para adolescência/ juventude para vida adulta como, por exemplo, "o que fazer do futuro" ou "relacionamentos amorosos".

Além de ser um jovem com todos os "dramas" adolescentes a flor da pele, Houlden Caulfield tem por características principais o fato de ser um bom ouvinte e um mentiroso nato, o que permite a ele firmar conversas e contar anedotas a qualquer um que lhe dê ouvidos. Contudo, mesmo em vista de tais predicados, Houlden não faz o tipo "cínico detestável", muito ao contrário: é justamente a mistura desses malfadados traços de personalidade que torna a narrativa do herói da trama tão envolvente e - porque não?! - sincera.


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Em que pese a perspectiva do livro ser a de um jovem que enfrenta todas as questões tradicionais a qualquer um que esteja naquele limbo entre os doze e dezoito anos de idade, "O Apanhador no Campo de Centeio" consegue abordar, de maneira absolutamente única, aqueles clássicos dilemas enfrentados por qualquer ser humano - de qualquer idade! - com o mínimo de sensibilidade, tocando, neste sentido, em aspectos como empatia, honestidade, afetuosidade...

Outro ponto legal do livro é a descrição de como o jovem, mesmo cercado de pessoas, consegue se sentir solitário e de como a busca incessante por companhia ou diversão vem, justamente, tentar preencher essa constante e dolorosa sensação de vazio.

Talvez, justamente por perpassar essa dolorosa solidão da juventude "O Apanhador no Campo de Centeio" seja uma obra tão atemporal. Isso porque, mesmo com as mais de cinquenta décadas que separam a data de lançamento do livro da presente leitura, é possível constatar que as grandes questões da juventude e do início da idade adulta (e não num contexto meramente etário, mas sim emocional) ainda são as mesmas: no livro, por exemplo, Houlden ligava para pessoas aleatórias ou ia ao encontro das mesmas apenas para ter com quem aplacar o vazio e as ausências de seu "grande fim-de-semana em Nova Iorque"; hoje, alinhavando um paralelo entre a "vida real" e a obra, surge a indagação sobre quantas vezes o acesso insistente à alguma rede social (Whatsapp, Facebook, Instagran, etc.) não foi apenas uma tentativa pífia de espantar aquela terrível sensação de desassossego trazida pela solidão?

Simplesmente: leitura obrigatória!

"Nunca conte nada a ninguém. Se você o fizer, começará a sentir falta de todos" - Houlden Caulfield

*E se você quiser um estímulo "a mais" para ler esse livro, saiba que ele é um dos favoritos do bilionário Bill Gates, portanto: vai que nessa leitura está a sua chave para o sucesso financeiro? #ficaadica


sexta-feira, 17 de março de 2017

Em um recanto sombrio entre as colinas

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No final do mês de fevereiro li, em formato e-book  para Kindle, o fantástico "A Assombração da Casa da Colina", da escritora norte-americana Shirley Jackson.

"Nenhum olho humano pode isolar a coincidência infeliz de linhas e locais que sugerem a malignidade na fachada de uma casa e, no entanto, alguma justaposição demente, algum ângulo defeituosos, algum encontro fortuito de telhado e céu transformava a Casa da Colina em um lugar de desespero. Mais amedrontadora porque a fachada da Casa da Colina parecia estar acordada, vigiando pelas janelas vazias e erguendo com sarcasmo a sobrancelha de uma cornija. Quase todas as casas, tomadas de surpresa ou vistas de um ângulo inesperado, podem olhar humoristicamente alguém que as observe; até uma chaminé brincalhona, ou um a janelinha de água-furtada que parece uma covinha, podem dar ao observador um senso de camaradagem; mas uma casa arrogante e cheia de ódio, sempre defensiva, só pode ser maligna". (pos. 412 a 417)

O livro é uma narrativa ficcional que, conforme muitas das resenhas que li, foi categorizada como um "romance gótico" e conta história de uma pequena expedição à sombria Casa da Colina - construída por um falecido milionário chamado Hugh Crain - onde os personagens participam de uma pesquisa de campo destinada a comprovar a existência do sobrenatural, do imponderável.

Na história, temos quatro personagens centrais: Eleanor Vance, uma solteirona triste que deixara de aproveitar a juventude em prol de cuidar da mãe doente; Theodora, uma jovem sedutora; Dr. Montague, o "líder" responsável pela expedição à Casa da Colina; e, por fim, Luke, o herdeiro da propriedade que acompanhou a expedição a pedido de uma tia apenas para evitar a ocorrência de danos na casa. Além deles, em caráter secundário, temos o casal de criados da casa, a esposa de Dr. Montague e seu jovem acompanhante.

No curso da história, Shirley Jackson leva o leitor a explorar a casa, a misteriosa construção na colina, sob a perspectiva dos quatro personagens centrais.
Dessa forma, ora se encara a construção com o bom-humor de Theodora que, como já dito, é uma jovem sedutora e ansiosa por ser o foco de todas as atenções; ora com a cobiça de Luke, o herdeiro que visualiza os bens de valor que a sua futura propriedade possui; ora com a vulnerabilidade de Eleanor; e, por fim, ora com o "didatismo" de Dr. Montague:

"- Precisamente. Não acharam que é difícil demais achar o caminho dentro desta casa? Uma casa normal não poderia deixar nos quatro tão confusos por tanto tempo, no entanto continuamos a escolher portas erradas, a sala que queremos foge de nós. Até eu estou tendo problemas. - Suspirou e abanou a cabeça. - Acho - continuou - que o velho Hugh Crain esperava que algum dia a Casa da Colina ficasse famosa e fosse exibida, como a Casa Winchester na Califórnia e muitas das casas octogonais; ele mesmo projetou a Casa da Colina, lembrem-se, e como já disse antes, era um homem muito estranho. Todos os ângulos - o doutor fez um gesto em direção à porta de entrada -, são ligeiramente errados. Hugh Crain deve ter detestado as outras pessoas, com casas sensatas, de ângulos perfeitos, porque fez a sua de acordo com suas ideias. Os ângulos que você espera, e tem o direito de esperar, que sejam aqueles ângulos retos a que está acostumado, têm realmente um erro de uma fração de grau em uma ou outra direção." (pos. 1299 a 1306)

É importante destacar que os participantes da  expedição não foram escolhidos a ermo pelo Dr. Montague em sua busca pela comprovação científica de fenômenos paranormais. Em realidade, como narra o livro, Theodora além de jovem e sedutora, teria poderes holísticos, enquanto que Eleanor, na infância, teria passado por uma experiência com poltergeists. Nesse contexto, com exceção de Luke, todos, de alguma maneira, tinham alguma relação com o sobrenatural que, na visão de Dr. Montague, facilitaria as pesquisas realizadas na casa.

Entretanto, a despeito dos personagens que habitam temporariamente a Casa durante a expedição, o livro tem como foco central a propriedade. Por essa razão é possível afirmar que a protagonista de toda a história é a própria Casa da Colina, com todos os seus recantos sombrios e enigmáticos.

"Indiscutivelmente, há lugares que inevitavelmente incorporam uma atmosfera de santidade e bondade; portanto não é tão absurdo dizer que há certas casas que nascem más. A Casa da Colina, seja por que for, tem sido inabitável há mais de vinte anos. Como era antes disso, se sua personalidade foi moldada por pessoas que moraram aqui, ou o que essas pessoas fizeram, ou se era maligna desde o início, são perguntas que não posso responder. Naturalmente espero que todos nós saibamos muito mais sobre a Casa da Colina antes de irmos embora daqui. Ninguém sabe mesmo porque algumas casas são chamadas de mal-assombradas." (pos.856 a 860)

Contudo, é nesse ponto que chega aquela parte em que se torna impossível falar mais da história sem incorrer no crime capital de "dar spoiler". Todavia, o que posso afirmar é que "A Assombração da Casa da Colina" é um livro descritivo, que cria toda uma atmosfera de tensão constante, conseguindo assustar o leitor com frases simples como, por exemplo: "então a porta se abriu". Para quem gosta de horror ou que se iniciar na leitura desse gênero, fica a forte dica.

"A Casa da Colina tem reputação de insistir em hospitalidade; parece que não gosta de perder seus convidados. A última pessoa que tentou deixar a Casa da Colina no escuro - foi há dezoito anos atrás, garanto - foi morta na curva da estrada, quando seu cavalo e a imprensou contra aquela árvore grande". (pos. 818 a 820)

*

Ah! Para quem não quiser imaginar e explorar a Casa da Colina por meio da leitura do livro, tem um filme chamado "A Casa Amaldiçoada", baseado na obra de Shirley Jackson. O filme é bem irregular, mas garante alguns sustos...



quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Quando me faltou o ar


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"Os homens encenam tragédias porque não acreditam na realidade da tragédia que de fato esta se desenrolando no mundo civilizado"  - José Ortega y Gasset (pos. 89 a 91) 

Há pouco mais de uma semana li - em formato ebook para o Kindle - o incrível "No Ar Rarefeito", do Jon Krakauer. Contudo, somente agora consegui retomar o fôlego para tentar escrever algo, pois a atmosfera do livro e a própria escrita do autor me permitiram vivenciar "a aventura de uma escalada, sem precisar sair do conforto de meu local de leitura".

Apenas para contextualizar um pouco a história, a narrativa se passa no Monte Everest, que é situado entre o Nepal e a China, na Ásia - continente das mais altas montanhas do planeta -, a 8.848,43m de altitude, e pode ser chamado como o "teto do mundo".
A montanha foi descoberta em 1852, quando cálculos da Great Trigonometrical Survey concluíram que o Everest - assim batizado em 1856, em homenagem ao geólogo americano George Everest - seria o pico mais alto da terra.

"Após a descoberta de Sikhdar, em 1852, seriam necessários a vida de vinte e quatro homens, os esforços de quinze expedições e o transcorrer de cento e um anos até que o cume do Everest fosse finalmente atingido" (pos. 755 a 757)

Em decorrência de o "topo do mundo" ter sido alcançado pela primeira vez, ano após ano aventureiros se lançam na dispendiosa e - por que não? - suicida tentativa de vencer a montanha. Dispendiosa, pois além dos custos da viagem, há o elevado valor da licença para escalada e dos custos de equipamento, guia e carregadores (estes chamados sherpas), o que onera em muito a empreitada. Suicida pelo alto nível de técnica e preparo que a escalada exige, bem como pela imprevisão do clima e da escassa quantidade de oxigênio.

"ocorreu-me que o topo do Everest estava a exatamente na mesma altitude que o jato pressurizado que me levava através do firmamento. Que eu estivesse pensando em subir à mesma altitude de cruzeiro de um Airbus 300 me pareceu, naquele momento, algo absurdo, ou ainda pior" (pos. 999 a 1.001)


                      Rota de acampamentos até a escalada final: necessários para aclimatação

"Bem-vindos ao acampamento-base do Everest", ele disse, sorrindo. O altímetro de meu relógio marcava 5.364 metros" (pos. 1.494 a 1.495)

"No acampamento-base havia mais ou menos metade do oxigênio que há no nível do mar; no cume, apenas um terço disso" (pos. 1.701)

Pois bem.

O livro parte da abordagem pessoal - mas sem perder um pouco do estilo jornalístico do autor, que é colunista de uma publicação sobre esportes radicais chamada Outside - de Jon Krakauer sobre a tragédia ocorrida, no ano de 1996, em uma escalada comercial ao Monte Everest, quando várias pessoas perderam a vida nas encostas da montanha e outras tantas ficaram feridas.

"Havia muitas e ótimas razões para não ir, mas tentar escalar o Everest é um ato intrinsecamente irracional - um triunfo do desejo sobre a sensatez. Qualquer pessoa que contemple tal possibilidade com seriedade está quase que por definição além do alcance de argumentos racionais. A verdade é que eu sabia que não deveria ir, mas fui assim mesmo. E ao ir, acompanhei de perto a morte de pessoas boas. Isso é algo que talvez permaneça em minha consciência por muito tempo" (pos. 141 a 146)

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               Participantes da expedição de 1996, acompanhados por Jon Krakauer

O livro narra com riqueza de detalhes o clima da montanha, as extenuantes caminhadas aos acampamentos e a rotina de aclimatação para que o corpo humano se adapte a uma limitada quantidade de oxigênio - o que proporciona, a quem imerge na leitura, uma aproximação muito realista da vivência de uma escalada de grande porte como a subida ao Everest.
Entrementes, muito além de uma narrativa eletrizante, o texto de Krakauer traz uma abordagem muito pertinente sobre a "comercialização" dos esportes de aventura e como muitos guias se predispõem, por ganância ou vaidade, a levar aventureiros sem preparo para experiências de vida e morte.

"E talvez seja esse o motivo racional de todos os esportes de risco: você eleva, deliberadamente, o grau de esforço e concentração, com o objetivo, digamos assim, de limpar a mente das trivialidades. Trata-se de um modelo de vida em pequena escala, mas com uma diferença fundamental: ao contrário da vida rotineira, na qual em geral é possível corrigir os erros e chegar a algum tipo de acordo que satisfaça todas as partes, nossas ações, mesmo que por momentos brevíssimos têm consequências seríssimas. (A. Alvarez. The saveg God: A study of suicide) (pos. 1.715 a 1.720)

Outra questão trazida à tona no livro, é o fato de o Monte Everest exercer um fascínio um tanto quanto macabro sobre os alpinistas que se dispõem a tentar vencer o desafio de conquistar o "topo do mundo". Isso porque, se não bastasse o perigo da escalada em si, tem-se que a morte é constantemente lembrada por meio dos corpos de alpinistas que não tiveram a sorte de sobreviver às intempéries da montanha e que, dada a quantidade rarefeita do ar, não puderam ter seus restos mortais resgatados.

"A 6248 metros, um resgate seguro por helicóptero era impossível - o ar ali é ralo para fornecer força de ascensão aos rotores, o que torna muito perigoso pousar, subir, ou simplesmente planar." (pos. 1.410)

"Aí esta o nó do dilema que todo alpinista no Everest acaba tendo que enfrentar: para ter sucesso, você precisa estar bastante motivado, mas, se a motivação for excessiva, é provável que você morra. Além do mais, acima dos 7900 metros, a linha divisória entre zelo apropriado e febre desmiolada do topo torna-se perigosamente tênue. Por esse motivo é que as encostas do Everest estão cheias de cadáveres"  (pos. 3.453 a 3.456)


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                                           Tsewang Paljor, morto na tragédia de 1996,
                                     o cadáver mais célebre na encosta do Everest e ponto de
                                         referência de montanhistas para chegada ao cume

"O primeiro cadáver me deixara muito abalado por várias horas; o choque de encontrar o segundo passou quase instantaneamente. Poucos alpinistas que passaram pelos dois locais deram aos corpos mais que uma olhada rápida. Havia como que um acordo tácito na montanha para fingir que esses restos dessecados não eram reais - como se nenhum de nós tivesse coragem de admitir o que estava em jogo ali." (pos. 2.283 a 2.286) 

Enfim, "No ar rarefeito" é uma narrativa de aventura e, de certo modo, autobiográfica. O livro traz também informações muito interessantes sobre escalada e planejamento de expedições, tendo, ainda, o poder de servir de alerta a qualquer aventureiro - pretenso ou real - sobre os riscos da subida ao Everest.

Nos capítulos finais - aqui sem trechos transcritos - Jon Krakauer proporciona ao leitor a possibilidade de ver como o ser humano é frágil em relação a força da natureza e, infelizmente, como situações de risco são capazes de transformar o mais generoso e centrado dos homens em um exemplo de insanidade e egoísmo.

"No ar rarefeito", não é um livro para quem possui melindres, especialmente por relatar uma tragédia real, porém é aquele tipo de obra que permite a quem se dedica a sua leitura "vivenciar uma aventura, no conforto de seu lar". É um texto honesto, despretensioso e de certa forma sensível: certamente, para quem gosta de ação, é uma boa pedida de leitura!

"Montado no topo do mundo, um pé na China, outro no Nepal, limpei o gelo de minha máscara de oxigênio, curvei o ombro para me proteger do vento e fixei o olhar distraído na vastidão do Tibete. Compreendia, em algum recanto obscuro e diante da mente, que aquela imensidão sob meus pés era uma visão espetacular. Durante meses a fio, eu tecera fantasias sobre esse momento, sobre as intensas emoções que acompanhariam. Porém, agora que estava finalmente ali, de pé sobre o cume do monte Everest, não conseguia juntar energia suficiente para me dar conta do feito." (pos. 632 a 636)

domingo, 12 de fevereiro de 2017

Muito mais que MI-MI-MI

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Em uma sentada só - pois falar que li um livro em um único fôlego pode soar dramático além da conta - reli o excelente "Sejamos Todos Feministas", da autora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie.

O livro, que inclusive se encontra disponível para download gratuito no site da editora Companhia das Letras, é uma adaptação do discurso que Chimamanda realizou em Dezembro de 2012 no TEDxEuston, uma espécie de conferência realizada anualmente com foco na África.

Pois bem.

O ponto crucial  do discurso de Chimamanda - além da elementar argumentação sobre a necessidade de se buscar a igualdade de direitos entre homens e mulheres - é o enfrentamento da questão de que o feminismo não é um gênero (feminino) contra o outro (masculino), mas sim a afirmação de que mulheres não são, em absoluto, inferiores aos homens (e nem os homens, inferiores as mulheres!).

Partindo da premissa do preconceito enfrentado pelo sexo feminino em um - ainda existente - contexto social eminentemente patriarcal, Chimamanda outorga valor à discussão de gênero e convida, de maneira absolutamente despretensiosa, a reflexão:

"Uma vez eu estava falando sobre a questão de gênero e um homem me perguntou por que eu me via como uma mulher e não como um ser humano. É o tipo de pergunta que funciona para silenciar a experiência específica de uma pessoa. Lógico que eu sou um ser humano, mas há questões particulares que acontecem comigo no mundo porque sou mulher. Esse mesmo homem, a propósito, com frequência falava de sua experiência como homem negro. (E eu deveria ter respondido: "Por que você não fala das suas experiências como um homem ou um ser humano? Por que tem que ser como um homem negro?")." (p. 45/46)

"Como a questão de gênero incomoda, as pessoas recorrem a vários argumentos para cortar a conversa. Algumas lançam mão da biologia evolutiva dos macacos, lembrando como as fêmeas, por exemplo, se curvam perante os machos. Mas a questão é a seguinte: nós não somos macacos. Macacos vivem em árvores e comem minhocas. Nós, não." (p. 45)

"Então, de uma forma literal, os homens governam o mundo. Isso fazia sentido há mil anos. Onde os seres humanos viviam num mundo onde a força física era o atributo mais importante para a sobrevivência; quanto mais forte a pessoa, mais chance ela tinha de liderar. E os homens, de uma maneira geral, são fisicamente mais fortes. Hoje, vivemos num mundo completamente diferente. A pessoa mais qualificada para liderar não é a pessoa fisicamente mais forte. É a mais inteligente, a mais culta, a mais criativa, a mais inovadora. E não existem hormônios para esses atributos. Tanto um homem como uma mulher podem ser inteligentes, inovadores, criativos. Nós evoluímos. Mas nossas ideias de gênero ainda deixam a desejar." (p. 21)

Chimamanda sustenta que, não obstante por questões eminentemente biológicas homens e mulheres sejam distintos entre si, não há motivo para que haja a enorme segregação de direitos que é imposta, mesmo que de maneira velada, à população feminina:

"Homens e mulheres são diferentes. Temos hormônios em quantidades diferentes, órgãos sexuais diferentes e atributos biológicos diferentes - as mulheres podem ter filhos, os homens não. Os homens têm mais testosterona e em geral são fisicamente mais fortes do que as mulheres. Existem mais mulheres do que homens no mundo - 52% da população mundial é feminina -, mas os cargos de poder e prestígio são ocupados pelos homens. A já falecida queniana Wangari Maathai, ganhadora do prêmio Nobel da Paz, se expressou muito bem e em poucas palavras quando disse que quanto mais perto do topo chegamos, menos mulheres encontramos" (p. 19/20)

E para melhor ilustrar seu discurso, Chimamanda traz diversos exemplos por meio dos quais é possível criar uma identificação imediata com a indispensável discussão sobre a questão de gênero:

"Tenho numa amiga americana que substituiu um homem num cargo de gerência. Seu predecessor era considerado um "cara durão", que conseguia tudo; era grosseiro, agressivo, rigoroso quanto à folha de ponto. Ela assumiu o cargo, e se imaginava tão dura quanto o chefe anterior, mas talvez um pouco mais generosa - ao contrário dela, ele nem sempre lembrava que as pessoas tinham família. Em poucas semanas no emprego, ela puniu um empregado por ter falsificado a folha de ponto - exatamente como seu predecessor teria feito. O empregado reclamou com o gerente sênior, dizendo que ela era agressiva e difícil. Os outros funcionários concordaram. Um deles, inclusive, disse que tinha achado que ela traria um "toque feminino" ao ambiente de trabalho, mas que isso não acontecera. Não ocorreu a ninguém que ela estava fazendo a mesma coisa pela qual um homem teria recebido elogios". (p. 25/26)

"Conheço uma família que tem um filho e uma filha, com um ano de diferença, ambos alunos brilhantes. Quando o menino está com fome, os pais mandam a garota preparar um macarrão instantâneo para o irmão. Ela não gosta de cozinhar macarrão instantâneo, mas como é menina, tem que obedecer". (p. 39)

"Conheço uma mulher que tem o mesmo diploma e o mesmo emprego que o marido. Quando eles chegam em casa do trabalho, a ela cabe a maior parte das tarefas domésticas, como ocorre em muitos casamentos. Mas o que me surpreende é que sempre que ele troca a fralda do bebê ela fica agradecida. Por que ela não se dá conta de que é normal e natural que ele ajude a cuidar do filho?" (p. 39) 

Ao ler ou assistir o discurso de Chimamanda, a grande reflexão a ser feita é "quanto de preconceito sobre gênero existe em mim?". 

"Perdemos muito tempo ensinando as meninas a se preocupar com o que os meninos pensam delas. Mas o oposto não acontece. Não ensinamos os meninos a se preocuparem em ser "benquistos". Se, por um lado, perdemos muito tempo dizendo as meninas que elas não podem sentir raiva ou ser agressivas ou duras, por outro lado elogiamos ou perdoamos os meninos pelas mesmas razões. Em todos os lugares do mundo, existem milhares de artigos e livros ensinando o que as mulheres devem fazer, como devem ou não devem ser para atrair e agradar os homens. Livros sobre como os homens devem agradar as mulheres são poucos." (p. 27)

Com a releitura do livro, pude ver que cada frase tecida pela autora - mesmo diante da resistência inicial que as discussões de gênero trazem consigo, afinal: hoje tudo é rotulado de "mi-mi-mi" - contém um convite tanto ao pensamento crítico, quanto à ponderação de valores tão arraigados em nossa criação e  sobre a adequação dos mesmos ao contexto social atual. 

Ora, seria a própria questão do recato e da sexualidade um tema ser constante tabu? Por que é tão difícil compreender que em um estupro, por exemplo, a culpa nunca é da vítima, logo, pouco importa a roupa ou a atitude dela? 
Por que sua chefe é "louca" e seu chefe é "difícil"? 
Por que sua amiga é dramática e faz "tempestade em copo d'água" enquanto que seu amigo, tadinho, é frágil?
Por que, ainda hoje, falamos em "moça para casar"?
Quem criou a regra de "não se deve 'dar' de primeira"?
Por que a escolha de não querer se casar deve ser sempre justificada?
Por que o não querer ter filhos é visto como algo tão terrível?

Por essas e tantas outras questões: sejamos todos feministas! 

"A questão de gênero é importante em qualquer canto do mundo. É importante que comecemos a planejar e sonhar um mundo diferente. Um mundo mais justo. Um mundo de homens mais felizes e mulheres mais felizes, mais autênticos consigo mesmos. E é assim que devemos começar: precisamos criar nossas filhas de uma maneira diferente. Também precisamos criar nossos filhos de uma maneira diferente." (p. 28)