quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Quando me faltou o ar


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"Os homens encenam tragédias porque não acreditam na realidade da tragédia que de fato esta se desenrolando no mundo civilizado"  - José Ortega y Gasset (pos. 89 a 91) 

Há pouco mais de uma semana li - em formato ebook para o Kindle - o incrível "No Ar Rarefeito", do Jon Krakauer. Contudo, somente agora consegui retomar o fôlego para tentar escrever algo, pois a atmosfera do livro e a própria escrita do autor me permitiram vivenciar "a aventura de uma escalada, sem precisar sair do conforto de meu local de leitura".

Apenas para contextualizar um pouco a história, a narrativa se passa no Monte Everest, que é situado entre o Nepal e a China, na Ásia - continente das mais altas montanhas do planeta -, a 8.848,43m de altitude, e pode ser chamado como o "teto do mundo".
A montanha foi descoberta em 1852, quando cálculos da Great Trigonometrical Survey concluíram que o Everest - assim batizado em 1856, em homenagem ao geólogo americano George Everest - seria o pico mais alto da terra.

"Após a descoberta de Sikhdar, em 1852, seriam necessários a vida de vinte e quatro homens, os esforços de quinze expedições e o transcorrer de cento e um anos até que o cume do Everest fosse finalmente atingido" (pos. 755 a 757)

Em decorrência de o "topo do mundo" ter sido alcançado pela primeira vez, ano após ano aventureiros se lançam na dispendiosa e - por que não? - suicida tentativa de vencer a montanha. Dispendiosa, pois além dos custos da viagem, há o elevado valor da licença para escalada e dos custos de equipamento, guia e carregadores (estes chamados sherpas), o que onera em muito a empreitada. Suicida pelo alto nível de técnica e preparo que a escalada exige, bem como pela imprevisão do clima e da escassa quantidade de oxigênio.

"ocorreu-me que o topo do Everest estava a exatamente na mesma altitude que o jato pressurizado que me levava através do firmamento. Que eu estivesse pensando em subir à mesma altitude de cruzeiro de um Airbus 300 me pareceu, naquele momento, algo absurdo, ou ainda pior" (pos. 999 a 1.001)


                      Rota de acampamentos até a escalada final: necessários para aclimatação

"Bem-vindos ao acampamento-base do Everest", ele disse, sorrindo. O altímetro de meu relógio marcava 5.364 metros" (pos. 1.494 a 1.495)

"No acampamento-base havia mais ou menos metade do oxigênio que há no nível do mar; no cume, apenas um terço disso" (pos. 1.701)

Pois bem.

O livro parte da abordagem pessoal - mas sem perder um pouco do estilo jornalístico do autor, que é colunista de uma publicação sobre esportes radicais chamada Outside - de Jon Krakauer sobre a tragédia ocorrida, no ano de 1996, em uma escalada comercial ao Monte Everest, quando várias pessoas perderam a vida nas encostas da montanha e outras tantas ficaram feridas.

"Havia muitas e ótimas razões para não ir, mas tentar escalar o Everest é um ato intrinsecamente irracional - um triunfo do desejo sobre a sensatez. Qualquer pessoa que contemple tal possibilidade com seriedade está quase que por definição além do alcance de argumentos racionais. A verdade é que eu sabia que não deveria ir, mas fui assim mesmo. E ao ir, acompanhei de perto a morte de pessoas boas. Isso é algo que talvez permaneça em minha consciência por muito tempo" (pos. 141 a 146)

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               Participantes da expedição de 1996, acompanhados por Jon Krakauer

O livro narra com riqueza de detalhes o clima da montanha, as extenuantes caminhadas aos acampamentos e a rotina de aclimatação para que o corpo humano se adapte a uma limitada quantidade de oxigênio - o que proporciona, a quem imerge na leitura, uma aproximação muito realista da vivência de uma escalada de grande porte como a subida ao Everest.
Entrementes, muito além de uma narrativa eletrizante, o texto de Krakauer traz uma abordagem muito pertinente sobre a "comercialização" dos esportes de aventura e como muitos guias se predispõem, por ganância ou vaidade, a levar aventureiros sem preparo para experiências de vida e morte.

"E talvez seja esse o motivo racional de todos os esportes de risco: você eleva, deliberadamente, o grau de esforço e concentração, com o objetivo, digamos assim, de limpar a mente das trivialidades. Trata-se de um modelo de vida em pequena escala, mas com uma diferença fundamental: ao contrário da vida rotineira, na qual em geral é possível corrigir os erros e chegar a algum tipo de acordo que satisfaça todas as partes, nossas ações, mesmo que por momentos brevíssimos têm consequências seríssimas. (A. Alvarez. The saveg God: A study of suicide) (pos. 1.715 a 1.720)

Outra questão trazida à tona no livro, é o fato de o Monte Everest exercer um fascínio um tanto quanto macabro sobre os alpinistas que se dispõem a tentar vencer o desafio de conquistar o "topo do mundo". Isso porque, se não bastasse o perigo da escalada em si, tem-se que a morte é constantemente lembrada por meio dos corpos de alpinistas que não tiveram a sorte de sobreviver às intempéries da montanha e que, dada a quantidade rarefeita do ar, não puderam ter seus restos mortais resgatados.

"A 6248 metros, um resgate seguro por helicóptero era impossível - o ar ali é ralo para fornecer força de ascensão aos rotores, o que torna muito perigoso pousar, subir, ou simplesmente planar." (pos. 1.410)

"Aí esta o nó do dilema que todo alpinista no Everest acaba tendo que enfrentar: para ter sucesso, você precisa estar bastante motivado, mas, se a motivação for excessiva, é provável que você morra. Além do mais, acima dos 7900 metros, a linha divisória entre zelo apropriado e febre desmiolada do topo torna-se perigosamente tênue. Por esse motivo é que as encostas do Everest estão cheias de cadáveres"  (pos. 3.453 a 3.456)


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                                           Tsewang Paljor, morto na tragédia de 1996,
                                     o cadáver mais célebre na encosta do Everest e ponto de
                                         referência de montanhistas para chegada ao cume

"O primeiro cadáver me deixara muito abalado por várias horas; o choque de encontrar o segundo passou quase instantaneamente. Poucos alpinistas que passaram pelos dois locais deram aos corpos mais que uma olhada rápida. Havia como que um acordo tácito na montanha para fingir que esses restos dessecados não eram reais - como se nenhum de nós tivesse coragem de admitir o que estava em jogo ali." (pos. 2.283 a 2.286) 

Enfim, "No ar rarefeito" é uma narrativa de aventura e, de certo modo, autobiográfica. O livro traz também informações muito interessantes sobre escalada e planejamento de expedições, tendo, ainda, o poder de servir de alerta a qualquer aventureiro - pretenso ou real - sobre os riscos da subida ao Everest.

Nos capítulos finais - aqui sem trechos transcritos - Jon Krakauer proporciona ao leitor a possibilidade de ver como o ser humano é frágil em relação a força da natureza e, infelizmente, como situações de risco são capazes de transformar o mais generoso e centrado dos homens em um exemplo de insanidade e egoísmo.

"No ar rarefeito", não é um livro para quem possui melindres, especialmente por relatar uma tragédia real, porém é aquele tipo de obra que permite a quem se dedica a sua leitura "vivenciar uma aventura, no conforto de seu lar". É um texto honesto, despretensioso e de certa forma sensível: certamente, para quem gosta de ação, é uma boa pedida de leitura!

"Montado no topo do mundo, um pé na China, outro no Nepal, limpei o gelo de minha máscara de oxigênio, curvei o ombro para me proteger do vento e fixei o olhar distraído na vastidão do Tibete. Compreendia, em algum recanto obscuro e diante da mente, que aquela imensidão sob meus pés era uma visão espetacular. Durante meses a fio, eu tecera fantasias sobre esse momento, sobre as intensas emoções que acompanhariam. Porém, agora que estava finalmente ali, de pé sobre o cume do monte Everest, não conseguia juntar energia suficiente para me dar conta do feito." (pos. 632 a 636)

5 comentários:

  1. Nat, eu resumiria minha sensação ao ler esta resenha em uma frase: preciso imediatamente deste livro!
    Adorei, perfeito!
    Beijos, Tati

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    1. Obrigada! Nenhuma linha deste blog teria sido escrita sem o seu incentivo :) E leia "No ar rarefeito", é fantástico!

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  2. Nat, eu e Fábio gostamos mtoooo do seu texto, pois tivemos a oportunidade de relembrar essa história, uma vez que ele já leu esse livro e, de tão empolgado, já me contou diversas vezes sobre alguns capítulos e episódios da expedição.
    Segundo Fabio, pra quem conhece e vivência esse universo da escalada, o livro peça um pouco em relação à parte técnica, pois "exagera" em certos aspectos.

    Porém, para nós, leigas, do que nos importa a parte técnica? Queremos mesmo é degustar uma aventura emocionante, que nos prenda até o último capítulo e que leve nossa imaginação para o "Teto do Mundo"! Afinal, no mundo da ficção, tudo é possível, inclusive escalar o Everest no "conforto do nosso local de leitura"!

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    1. Vou querer saber a parte técnica em um bate papo com você e seu marido, amiga! Depois de "No ar rarefeito", li alguns textos sobre escalada na internet e continuo empolgada sobre o assunto! Obrigada pela visita.

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