domingo, 11 de junho de 2017

No front das emoções


"Minha mãe correu até o trem...Ela era rígida. Nunca nos beijava, não elogiava. Se a gente fizesse algo bom, ela só nos lançava um olhar carinhoso e pronto. Mas naquela hora ela veio correndo, segurou minha cabeça e me beijou, beijou. E então me olhou nos olhos...Ficou olhando...Por muito tempo...Entendi que nunca mais veria a minha mãe. Senti isso...Deu vontade de largar tudo, entregar minha sacola e voltar para casa. Fiquei com pena de todos...Da minha avó...Dos meus irmãozinhos...E então começou a tocar a música...Veio a ordem: 'Dis-per-sar! Em-barcar! Aaaaos vagões!'. Passei muito tempo acenando com as mãos..." (Tamara Uliánova Ladínina, soldado de infantaria) (p. 73)

Precisei de quase duas semanas para finalizar a leitura do magnífico "A guerra não tem rosto de mulher" escrito pela, vencedora do Nobel de Literatura de 2015, Svetlana Aleksiévitch, e traduzido/editado em Língua Portuguesa pela editora Cia das Letras.

E se não fosse suficiente o extenso período de leitura, necessitei, ainda, de dois dias de reflexão para só então conseguir escrever algo sobre esse livro...
A cada virada de página brotava em meu coração uma emoção diferente: por meio desse livro, pude experimentar do mais profundo ódio, até o mais sublime amor! 
Muito embora ler sobre uma guerra não seja, em absoluto, comparável a experiência de viver um conflito armado, ouso dizer que os relatos do livro são tão cativantes que têm o poder de levar o leitor ao front, à enfermaria, ao campo de trabalho forçado...como chorei (e chorei!) lendo "A guerra não tem rosto de mulher"...


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Para contextualizar um pouco, o "A guerra não tem rosto de mulher" traz a luz histórias, até então ignoradas, sobre as soldadas e guerrilheiras soviéticas que lutaram durante a terrível 2ª Guerra Mundial, descrevendo o papel - sem dúvida, fundamental! - delas na vitória sobre o horror propagado por Hitler e seus aliados.

"Mas, na Segunda Guerra Mundial, o mundo foi testemunha do fenômeno feminino. Em muitos países, as mulheres serviram em todas as forças armadas: nas tropas inglesas eram 225 mil, nas americanas, 450, 500 mil; nas alemães, 500 mil...No exército soviético lutaram aproximadamente 1 milhão de mulheres. Elas dominavam todas as especialidades militares, inclusive as mais "masculinas". Surgiu até um problema linguístico: as palavras 'tanquista', 'soldado de infantaria', 'atirador de fuzil', até aquela época, não tinham gênero feminino, porque mulheres nunca tinham feito esse trabalho. O feminino dessas palavras nasceu lá, na Guerra..." (p. 8)

Além disso, convém mencionar que a obra foi escrita no final dos anos 1970, antes do recente fenômeno do empoderamento feminino ou mesmo da era do "livre" acesso à informação que vivemos hoje. Portanto, logo de inicio, Svetlana conta um pouco sobre seu diário de escrita e sobre as recusas que o manuscrito teve por parte de editoras durante muitos anos:

"O manuscrito está na gaveta há muito tempo...Já faz dois anos que recebo recusas das editoras. Silêncio das revistas. A sentença é sempre a mesma: é uma guerra terrível demais. Muito horror. Naturalismo. Não há menção à liderança e à orientação do Partido Comunista. Em outras palavras, não é a guerra certa...E qual seria? Com generais e o sábio generalíssimo? Sem sangue e sem piolhos? Com heróis e façanhas?" (p. 25)

A autora, ao comentar a rotina de sua escrita, traz informações sobre as entrevistas que realizou e sobre trechos retirados do manuscrito original, sugerindo o que poderia ser interpretado como o motivo pelo qual, durante tantos anos, a história feminina na Guerra foi escondida, enquanto que aquilo contado e narrado por homens foi tão enaltecido:

"Os homens...A contragosto eles deixam a mulher entrar em sua guerra, em seu território. Fui procurar uma mulher na fábrica de tratores de Minsk; ela tinha sido francoatiradora. E famosa. Apareceu mais de uma vez em manchetes de jornal. As amigas dela me deram o número do telefone de sua casa em Moscou, mas era antigo. Sobrenome também, eu só tinha o de solteira. Fui à fábrica onde, como eu sabia, ela trabalhava, e no departamento pessoal escutei dos homens (do diretor da fábrica e do chefe do departamento): "Por acaso falta homem para isso? Para que você quer essas histórias de mulher? Fantasias de mulher...". Os homens tinham medo de que elas não contassem direito a guerra." (p. 21)

Após isso, surge o convite ao leitor para o mergulho num mar de emoções decompostas em auto-impressões da própria Svetlana sobre as histórias ouvidas, e em transcrições fiéis dos relatos ouvidos.

"Alguém nos entregou...Os alemães descobriram onde ficava o acampamento dos partisans. Cercaram a floresta e fecharam as passagens por todos os lados. Nos escondemos em um matagal fechado, fomos salvos pelos pântanos onde a tropa punitiva entrava. Um lodaçal. Ele encobria muito bem tanto as pessoas quanto os equipamentos. (...) Havia conosco uma operadora de rádio que tivera filho há pouco tempo. A criança estava com fome...Pedia o peito. Mas a própria mãe estava passando fome e não tinha leite, e a criança chorava. Os soldados da tropa punitiva estavam por perto...Tinham cachorros...Se os cachorros escutassem, todos nós morreríamos. Todo o grupo, umas trinta pessoas. Entende? O comandante tomou a decisão...Ninguém se animava a transmitir a ordem para a mãe, mas ela mesma adivinhou. Foi baixando a criança enroladinha para a água e segurou ali por um longo tempo...A criança não gritou mais...Nenhum som...E nós não conseguíamos levantar os olhos. Nem para mãe, nem uns para os outros..." (p. 32)

Pois bem.

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Lyudmila Pavlichenko, francoatiradora

Assim como no "Vozes de Tchernóbil", Svetlana Aleksiévitch constrói o seu livro a partir da transcrição ipis litteris dos relatos das mulheres do povo, das enfermeiras, das partisans e das soldadas que batalharam, junto com o Exército Vermelho e sob o pálio do ideal comunista, contra os partidários de Hitler no período da Segunda Grande Guerra.

Em cada relato é possível sentir as emoções que permeiam o contexto de uma guerra onde o sustento daqueles que foram para o front, muitas vezes foi a fé em um ideal.
Na guerra contada por meio do livro de Svetlana, vê-se o heroico em pequenos gestos, como o de enfermeiras raquíticas que carregavam da trincheira até a enfermaria soldados e equipamentos com o dobro de seu peso.

Há piolhos, doenças e sangue. Há fome. Há sede.

Contudo, o medo é suprimido ao máximo...não havia espaço para que o povo, o exército vermelho hesitasse: mesmo em posse de uma simples baioneta contra os tanques de artilharia alemã, ainda assim cada relato conta como o exército e o próprio povo avançava e lutava pela terra que amava, pelo ideal em que acreditavam.

"Será que encontro palavras? Sobre como eu atirava eu posso contar. Sobre como eu chorava, não. Isso continuará não dito. Sei de uma coisa: na guerra, o ser humano se torna terrível e inconcebível. Como entendê-lo? Você é escritora. Invente algo você mesma. Algo bonito. Sem piolhos nem sujeira, sem vômito...Sem cheiro de vodca e sangue...Que não seja tão terrível quanto a vida..." (Anastassia Ivánovna Medvédkina, soldado, atiradora de metralhadora) (p. 259)

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Mulheres e crianças andando para o leste da Rússia depois da invasão alemã, 1941. 
Foto: 1941 Max Alpert/Slava Katamidze Collection/Getty Images

Apesar do viés tão trágico e do jeito cru com que são lançados os relatos de guerra, a autora traz um ponto de vista mais humano sobre as batalhas e invasões:

"Isso já foi em Berlim...Me aconteceu o seguinte caso: estava andando pela rua e, ao meu encontro, veio saltando um menino com um fuzil, um Volkssturm, já no fim da guerra. Nos últimos dias. Eu estava com um fuzil nas mãos, preparado. Ele olhou para mil, piscou e começou a chorar. Eu também não acreditava em mim mesma: fiquei com os olhos marejados. Tive tanta pena, o guri ali com aquele fuzil idiota. Eu o empurrei na direção de um edifício destruído, para a entrada, e disse: "Esconda-se". Mas ele se assustou, achou que eu ia dar um tiro: eu estava com um gorro, não dava para ver se era uma moça ou um rapaz. Segurou minha mão. Estava aos prantos! Fiz carinho na cabeça dele. O menino emudeceu. Apesar de tudo, era a guerra...Sim, eu mesma fiquei muda! Eu os odiara por toda a guerra! Fosse justo ou injusto, eu tinha asco de matar, especialmente nos últimos dias da guerra..." (Albina Aleksándrovna Gantimurova, primeiro-sargento, batedora) (p. 367)

O livro, em conjunto, é um exercício para a empatia e um convite à reflexão sobre a (in)utilidade da guerra. Simplesmente: leitura obrigatória!

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