sexta-feira, 7 de abril de 2017

Palavras na brisa noturna



"Quando alguém mergulha nas próprias recordações, abre uma porta para o passado; a estrada lá dentro tem muitas ramificações e a cada vez o trajeto é diferente" (pos. 74 a 75)

Por indicação da minha amiga, Tatiane Nantes, na última semana li, em formato ebook,  o incrível "As Boas Mulheres da China", escrito por Xinran, uma jornalista chinesa radicada em Londres.
Contudo, antes de mergulhar no livro em si, pude constatar que a primeira questão lançada aos meus olhos Ocidentais foi: o quanto sei sobre a China?
Bem, particularmente, eu só conhecia a Muralha da China, a Mulan, o Horóscopo Chinês, assim como o fato de que os chineses consomem insetos e o de que a China é enquadrada como um país de ideologia comunista, além de ser o mais populoso do mundo...Ah! Também tem as Olimpíadas de Pequim e o Mahjong. E só!

Na verdade, confesso que nunca me interessei muito pela História chinesa e seus entraves culturais, políticos e sociais.
Também nunca dei a devida atenção aos noticiários que vez, por outra, dão conta de tragédias naturais na China, todavia, após o livro de Xinran, meu olhar sobre esse populoso país mudou completamente.

Dessa forma, apenas para contextualizar o momento histórico do livro, convém pontuar, ainda que sucintamente, os seguintes fatos da história da China, especialmente porque o livro é ambientado durante a ocorrência deles:

- O primeiro fato é que, no período de 1º de outubro de 1949 a 9 de setembro de 1976, a República Popular da China - que foi cunhada após a Revolução Chinesa - o país esteve sob o comando de Mao Tse-Tung, que seguia os ideais comunistas, no que se incluiu, por óbvio, uma brutal repressão àqueles que seguiam parâmetros capitalistas e neoliberais, chamados contrarrevolucionários.


Retrato oficial de Mao Tse-Tung


- O segundo é que, durante a gestão presidencial de Mao Tse-Tung foi promovida a "Grande Revolução Cultural Proletária", cujos alvos eram os membros do partido mais alinhados com o Ocidente ou com a União Soviética, funcionários burocratas e, sobretudo, intelectuais. Como na intelectualidade se encontravam alguns dos potenciais inimigos da Revolução, o ensino superior foi praticamente desativado no país.


- Já o terceiro é que, com a morte de Mao Tse-Tung, houve a ascensão de Den Xiaoping ao poder, adotando-se as Quatro Modernizações e implantando, no campo econômico, o Socialismo de Mercado, ocasião na qual a China passou a receber investimentos privados estrangeiros, desenvolver empresas privadas e a criar Zonas Econômicas Especiais. Entretanto, a Chincontinua sob o governo do Partido Comunista Chinês, que ainda reprime brutalmente as manifestações populares e a livre expressão. Exemplo disso foi o massacre promovido pelo governo na Praça da Paz Celestial, em Pequim, em 1989.

"Nós dizemos: 'em casa, acredite nos seus deuses e faça o que quiser; fora de casa, acredite no Partido e tome cuidado com o que fizer'" (pos. 1501) 

Pois bem.


Superada essa quase didática introdução, é tempo de passar ao livro de Xinran, autora que, segundo o site da Cia das Letras: "ficou conhecida como a jornalista que "ergueu o véu das mulheres chinesas", graças a seu programa de rádio em que ouvintes relatavam casos de violência e de sofrimento". Em "As Boas Mulheres da China", "ela narra experiências de suas entrevistadas ao mesmo tempo que conta a própria história, também marcada pelo preconceito e pela opressão".


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Xinran


"As Boas Mulheres da China" é, portanto, um livro essencialmente feminino e, em toda a sua brutalidade, é também um texto absolutamente sensível. Composto por uma coletânea de relatos das ouvintes do programa de rádio que Xinran apresentava, o "Palavras na brisa noturna" e da própria autora, que teve parte da infância ceifada durante a já mencionada Revolução Cultural, o livro traz o olhar de cada geração de mulheres chinesas - das mais as menos instruídas -, sobre três sensíveis temas que, interligados (e ressalvado o perigo da generalização), são constantes ao chamado "sexo frágil": amor, sexualidade e casamento.

"As boas chinesas são condicionadas a se comportar de maneira meiga e dócil, e levam esse comportamento para a cama. O resultado é que os maridos dizem que elas não têm sex appeal e as mulheres se submetem à opressão, convencidas de que a culpa é delas. Têm que arcar com a dor da menstruação e do parto, e trabalhar como homens para sustentar a família quando o marido não ganha o suficiente. Os homens penduram fotos de mulheres bonitas acima da cama para se excitarem, enquanto as esposas se culpam pelo corpo desgastado que têm. Em todo caso, aos olhos dos homens não existe isso de boa mulher" (pos. 721 a 725)

"Jin Shuai falou, com tom de autoridade: "O homem que uma mulher que seja esposa virtuosa, boa mãe e que possa fazer todo o trabalho doméstico como uma empregada. Fora de casa, ela deve ser atraente e culta, e ser um crédito para ele. Na cama, deve ser uma ninfomaníaca." (pos. 734 a 736)

"Quando bebem, os homens vêm com algumas definições de mulheres. As amantes são como peixes-espada: saborosas, mas com espinhas afiadas. As secretárias particulares são como carpas: é preciso cozinhá-las em fogo lento para terem mais sabor. As esposas dos outros homens são como o baiacu japonês: pode matar, mas correr o risco de morte é fonte de orgulho", "E as esposas deles mesmos?" "São bacalhau salgado"." Bacalhau salgado? Por quê?" "Porque o sal conserva por muito tempo. Quando não há outra comida, o bacalhau salgado é barato e conveniente, e, junto com arroz, dá uma refeição..." (pos. 859 a 864) 

Não se atendo, todavia, aos relatos de amor/sexo/casamento das mulheres entrevistadas, Xinran comenta aspectos culturais muito sutis às mulheres chinesas e faz ora um contraponto entre elas e as ocidentais, ora entre as "chinesas da cidade" e as "chinesas do interior":

"Nos anos 30, quando as ocidentais já exigiam a igualdade sexual, as chinesas apenas começavam a desafiar a sociedade dominada pelo homem, recusando-se a ter os pés enfaixados ou a contrair núpcias arranjadas pela geração mais velha." (pos. 882 a 883)

E justamente nesse contraponto, a autora consegue abordar temas delicados como violência doméstica e virgindade feminina:

"Para muitos chineses, quando um homem espanca a esposa ou os filhos, está "pondo a casa em ordem". As camponesas mais velhas, em particular, aceitam a prática. Como viveram de acordo com o ditado de que "uma esposa ressentida tem que suportar até virar sogra", acreditam que todas as mulheres devem sofrer o mesmo destino"

A virgindade feminina na China é um persistente tabu, especialmente porque a educação sexual constitui um tema praticamente proibido às chinesas, sobre as quais recai o ônus da castidade até o matrimônio sob um manto de absoluta ignorância.

Em mais de uma ocasião, o livro comenta que para muitas jovens chinesas questões simples como beijos e abraços entre casais são temas não abordados e condutas desencorajadas, sob o risco de a mulher (sempre a mulher!) ser considerada "má" e "usada", não apta para o casamento. Além disso, o livro descreve que, em virtude de tal desconhecimento, muitas mulheres chinesas são alvo de abusos cruéis:

"Na véspera de Ano-Novo do ano em que fiz onze anos, levantei bem cedo e, inexplicavelmente, estava sangrando. Fiquei tão assustada que me pus a chorar. A minha mãe, que veio ter comigo quando me ouviu, disse: "Hongxue, você cresceu". Ninguém, nem mesmo ela, tinha me falado sobre coisas de mulheres antes. Na escola, ninguém ousava fazer essas perguntas ultrajantes. Naquele mesmo dia, mamãe me deu uns conselhos básicos sobre como lidar com o meu sangramento, mas não explicou mais nada. (...) Um dia, em fevereiro, estava nevando muito e mamãe tinha saído para visitar uma vizinha. Meu pai tinha vindo da base militar, para uma de suas raras visitas. Ele me disse: "Sua mãe disse que você cresceu. Vamos, tire a roupa para papai ver se é verdade". (...) "Rápido! O papai ajuda!", disse ele, tirando-me a roupa com destreza. Ele, que normalmente tinha os movimentos lentos, estava totalmente diferente. Começou a passar as mãos pelo meu corpo inteiro, perguntando: "Esses mamilosinhos já incharam? É daqui que o sangue vem? Esses lábios querem beijar o papai? É gostoso quando o papai passa a mão aqui, assim?" . Eu me sentia morta de vergonha. Pelo que me lembrava, nunca tinha estado nua na frente de ninguém (...) Essa foi a minha primeira "experiência de mulher". Depois, tive uma náusea muito forte. A partir de então, bastava que minha mãe não estivesse na sala - ainda que estivesse só na cozinha, cozinhando, ou no banheiro - para que o meu pai me prensasse atrás da porta e me alisasse inteira. Fui ficando com um medo cada vez maior desse "amor"." (pos. 227 a 243)

Entrementes, não obstante seja dado conhecimento ao leitor sobre a ignorância de muitas chinesas sobre o sexo e o amor em si, o livro aborda um viés contraditório da cultura sexual chinesa pois se de um lado a castidade é exigida, de outro, admite-se certas formas de prostituição. Nesse particular, Xinran tocou no que seria chamado aqui no Ocidente como "prostituição de luxo":

"Hoje os homens ricos estão mais exigentes em seus requisitos para companhia feminina. Querem desfilar com uma 'secretária particular' ou com uma acompanhante que tenha cultura. (...) Uma secretária particular trabalha só para um homem, uma acompanhante trabalha para muitos. Há três níveis de companhia. O primeiro envolve acompanhar os homens a restaurantes, boates e bares de karaokê. O segundo nível leva a uma coisa um pouco além: eventos como teatro, cinema e assim por diante. Chamamos esse nível de 'vender arte, não a si mesma'. Claro que deixar esses homens passarem a mão em você por cima da roupa faz parte do trato. O terceiro nível envolve estar à disposição dia e noite, também para sexo."  (pos. 752 a 759)

Em síntese, "As Boas Mulheres da China" é um livro que transcende a essência da mulher chinesa, visto que consegue comunicar os anseios de mulheres que amam e sofrem a qualquer leitor, de qualquer gênero e nacionalidade.

Nesse panorama, traçando um paralelo entre os temas contidos no livro e a realidade brasileira, é fácil ver semelhanças entre as vivências das mulheres do Brasil e da China, visto que aqui, apenas em 2006, foi editada uma lei que resguarda as vítimas de violência doméstica. Além disso, senão por meio de uma ideologia política mas sim pela difusão de crenças fundamentalistas, a virgindade ainda é tabu e, não há como se negar a chamada "cultura do estupro".

Simplesmente, leitura recomendada e obrigatória.

Gratidão à amiga Tatiane, pela ótima indicação.

4 comentários:

  1. Nat, eu estou muito feliz que você tenha gostado, afinal, com tantos livros lidos é uma aventura indicar alguma obra!
    Quanto ao seu comentário, achei super completo e relevante! Continue escrevendo!

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    1. Tati, você é meu incentivo com a confecção destes textos. Obrigada pelos comentários sempre carinhosos!

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  2. Parabens pelos comentarios. Suas palavras possuem a delicadeza necessaria pra confrontar um tema tao duro. Trabalho atendendo vitimas de violencia domestica e confesso que nao consigo deixar de me espantar e comover a cada relato, em que pese as vezes serem narrados em tao de normalidade.
    Anseio cm o dia que praticas tao crueis de convivio deixem de existir. Novamente, parabens pelo belissimo texto. Abs!

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    1. Muito obrigada pelo seu comentário, fico contente em ter agradado com o texto!

      Imagino como deva ser a rotina de atendimentos às vítimas de violência doméstica, que muitas vezes tratam as seguidas violações que sofrem como algo normal...uma triste e cruel realidade.

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