
"Eu gostava da luz, gostava do ar entre as ripas. Eu queria escrever histórias cheias de correntes de ar, raios filtrados pelos quais dança o pó. E depois eu amava a escrita de quem te faz olhar para baixo de cada linha deixando sentir a vertigem da profundidade, a escuridão do inferno." (pos. 226 a 227)
Em meados de março, li, em formato ebook, o sofrido "Dias de Abandono", da mais nova coqueluche das prateleiras destacadas das livrarias: Elena Ferrante que, para quem não sabe, é um pseudônimo de uma escritora italiana que mantém, sob uma aura do mais absoluto mistério, em segredo a sua identidade.
Confesso que toda essa atmosfera de sigilo sobre a identidade de Elena Ferrante me levou a questionar se essa seria a razão para tanta comoção sobre os livros desta escritora. Contudo, com a leitura do "Dias de Abandono" e do maravilhoso "A Filha Perdida", constatei que esse recente sucesso no Brasil não é em vão!
Pois bem.
Falando sobre o livro, tem-se que o texto do "Dias de Abandono" é narrado em primeira pessoa e totalmente sob a perspectiva de Olga, uma mulher italiana típica, perdidamente apaixonada pelo marido Mário, uma boa mãe para seus rebentos Ilária e Gianni e, na medida do possível, uma dona razoável para o cão Otto.
Nesse cenário, apenas com a apresentação do círculo familiar da personagem central do livro, é possível imaginar que ela vive uma existência feminina plena, gozando de uma vida que poderia ser chamada de "comercial de margarina". Entretanto, em mais um dia comum de felicidade, o mundo de Olga caiu por meio de um intempestivo anúncio de divórcio:
"Uma tarde de abril, logo após o almoço, meu marido me comunicou que queria me deixar. Fez isso enquanto tirávamos a mesa, as crianças brigavam como sempre no outro cômodo, o cachorro sonhava resmungando ao lado do aquecedor. Disse-me que estava confuso, que vivia maus momentos de cansaço, de insatisfação, talvez de covardia. Falou por muito tempo dos nossos quinze anos casados, dos filhos, e admitiu que não tinha que reclamar nem deles nem de mim. Manteve a compostura de sempre, contendo um gesto de excesso com a mão direita quando me explicou com uma careta infantil que vozes leves, certo sussurro, o levavam para outro lugar. Depois assumiu a culpa de tudo que estava acontecendo e fechou com cuidado a porta atrás de si, deixando-me como uma pedra ao lado da pia." (pos. 57 a 60)
E assim começa, de maneira abrupta, o texto de Elena Ferrante. Nas páginas seguintes, acompanhamos como Olga lida com a dor do abandono, sofrimento este que extrapola as raias da mera tristeza e traz sintomas de dor física à mulher deixada pelo marido.
Elena, neste livro em particular, consegue, induzir o leitor a realmente se colocar no lugar de Olga e com isso sentir toda a intempérie de sentimentos suportada pela personagem.
Nessa catarse criada por meio do texto de Elena, eu que nunca vivenciei, enquanto esposa de alguém, a sensação de abandono trazida pela simples menção à palavra divórcio, consegui imaginar e sentir a dor de vivenciar o fim de uma união, ainda que haja algum consenso no final. "Dias de Abandono", em verdade, permitiu-me experimentar a sensação de frustração e raiva vivenciada por Olga e Mário em vista da relação que não foi a frente.
E se não fosse suficiente o drama do divórcio, o "Dias de Abandono" vai mais além, pois Elena Ferrante cria e narra todo um cenário de enfrentamento do divórcio pelos filhos do ex-casal, delineando uma breve ilustração sobre o tema alienação parental e sobre as pequenas chantagens emocionais feitas por crianças cujos pais se separaram e, quem sabem, já arranjaram novos companheiros.
Esta obra de Elena, além da catarse, permite ao leitor construir/identificar uma relação entre o sofrimento descritivo de Olga - a "pobre coitada" abandonada pelo marido - e as musas e compositoras de "canções de fossa" famosas. Particularmente, a cada virada de página, e cada lágrima/grito/ferida de Olga, vinha a minha mente a famosa "Meu mundo caiu", da cantora Maysa:
"Meu mundo caiu
E me fez ficar assim
Você conseguiu
E agora diz que tem pena de mim
Não sei se me explico bem
Eu nada pedi
Nem a você nem a ninguém
Não fui eu que caí
Sei que você me entendeu
Sei também que não vai se importar
Se meu mundo caiu
Eu que aprenda a levantar"
A fim de evitar dar grandes spoilers sobre o livro, basta encerrar comentando que "Dias de Abandono" é um livro para ser vivido e sentido até a última página. Simples assim.
Esse deve ser um livro realmente doído e pra sentir na pele.
ResponderExcluirÉ uma história tão comum aos nossos olhos, porém, bastante devastadora. Um livro que se propõe transferir sentimentos, é não só uma obra, mas também um presente.
Não li ainda o livro, porém este trechinho me fez pensar na Clarice Lispector e sua transparência.
Beijos, Nat!!
Verdade, Elena Ferrante tem um quê de Clarisse Lispector e também é o tipo de autora para se ler quando as emoções estão serenas, pois as tintas fortes trazidas nas narrativas dessas autoras podem, sem sombra de dúvida, levar o leitor a lugares emocionais nem sempre agradáveis. Adorei sua observação: "Um livro que se propõe transferir sentimentos, é não só uma obra, mas também um presente".
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